sábado, 21 de setembro de 2013

Necessidades Normais

Há dez anos minha mãe foi diagnosticada com Parkinson e com isso passou a fazer parte dos quase 14,5 % dos brasileiros que tem necessidades especiais. Fazer parte desse grupo não é nada fácil. Exige paciência, tolerância, grana e muito poder de se adaptar. Mas nem tudo é só triste e negativo.Ter algum tipo de deficiência oferece também inúmeras chances de reflexão e crescimento emocional e espiritual tanto para a pessoa, quanto para seus familiares. Uma coisa muito difícil, no entanto é ver como além do círculo familiar e dos amigos, muitas vezes rola uma falta de jeito das pessoas ao lidar com pessoas com essas necessidades.

Isso fica bem claro, por exemplo, quando saio com minha mãe por aí e vejo gente se impacientando quando ela está na fila abrindo a bolsa pra pegar o dinheiro pra pagar algo. Nessas situações, chovem perguntas e sugestões do tipo "Ajude ela!", "Abra a bolsa dela!" "Você não sabe a senha dela, não? Digite aí pra ela!" "Pra que você trouxe ela?" Nem sempre dá pra responder tudo isso na hora, por isso eu vou tentar responder aqui.

Vou começar pelo mais óbvio. Existem tipos diferentes de necessidades especiais e as formas dxs cuidadores ajudarem essas pessoas devem ser compatíveis com o tipo de dificuldades que elas enfrentam. A minha mãe, por exemplo, tem dificuldades motoras, mas seu raciocínio continua em cima, ou seja, não tem porque eu atropelar seu poder de se expressar e decidir nada por ela. Ela pode portanto, decidir se e quando quer ajuda e solicitar se preciso.

Muitas vezes sem querer e cheios de boas intenções, a gente acaba infantilizando e coisificando pessoas com necessidades especiais. Como você se sentiria se alguém metesse a mão na sua bolsa e pegasse seu dinheiro? Se alguém, mesmo que fosse de sua família, tomasse a sua frente na hora de pagar e digitasse sua senha na maquininha? Se do nada, alguém pegasse em qualquer parte do seu corpo? Acho que todo mundo concorda que não se faz nada disso com uma pessoa que não viva com nenhum tipo de deficiência por pura questão de bom senso e respeito ao espaço pessoal do outro. Porque não estender isso a quem tem necessidades especiais? Então eu pergunto se a pessoa quer que eu ajude antes de ajudar, pergunto se eu posso pegar nela ou nas coisas dela antes de pegar e se a pessoa diz "não" eu repeito. Acho que isso responde porque em algumas situações eu não ajudo, não abro a bolsa ou digito a senha da minha mãe.

A outra pergunta que me fazem muito, "porque você trouxe ela?" tem muito a ver como o que eu acabei de explicar também, mas vai além. Pessoas com necessidades especiais não devem ficar trancadas em casa sentadas/deitadas na frente da TV, inertes como se fossem parte do mobiliário da casa. Se elas podem de alguma forma se locomover, devem fazê-lo, se podem cuidar de si mesmas, resolver suas coisas, idem. Arrancar todas as tarefas e responsabilidades das mãos dessas pessoas, ao invés de ajudar até atrapalha.Todo mundo gosta de se sentir no controle da própria vida, não é mesmo? Isso sem contar que esconder certas pessoas em casa porque elas não correspondem ao padrão que todo mundo gosta de ver, é coisa da era medieval e do nazismo. Minha mãe gosta de sair, tem dificuldade de locomoção, é adulta e tem contas a pagar. Por isso eu a levo mesmo e vou continuar levando enquanto ela puder se mexer e quiser ir.

Hoje é Dia Nacional da Luta das Pessoas com Deficiência. Vamos aproveitar essa data para refletir sobre a forma como tratamos essas pessoas. A inclusão delas na sociedade passa por, mas vai muito mais além que construir rampas de acesso a transporte e locais públicos. É também (e talvéz em primeiro lugar) uma questão de passar aceitar que essas pessoas, assim como todos nós, querem ser tratadas com respeito, tem direito e querem administrar as próprias vidas quando possível e com suas habilidades variáveis, conseguem fazer algumas coisas e não conseguem ou tem dificuldade de fazer outras. E o que é isso senão absolutamente normal?


segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Efeito dominó da educação

Semana passada eu declarei aqui meu amor por minha cidade e revelei o quanto tenho estado triste com as cenas de descaso que venho encontrando por aí. Esta semana vou falar de outra coisa negativa que tem chamado minha atenção no meu retorno à Salvador. A crescente falta de educação do soteropolitano.

Antes de eu começar, deixa eu esclarecer uma coisa. Pra quem ainda não sabe, eu vou repetir algo que não canso de dizer: Eu amo Salvador. Uma cidade não é composta apenas de suas belezas naturais e arquitetônicas. Boa parte do que faz uma cidade ser o que é, são seus habitantes, então eu adoro meus conterrâneos também. Nós soteropolitanos, temos um jeito de falar gostoso, somos muito engraçados, muitas vezes até sem querer. Somos barulhentos, criativos, cheios de charme e cheios de vida. Somos carinhosos e temos formas bem peculiares de demonstrar nosso afeto e senso de humor através de nosso dialeto. Enfim, o soteropolitano é show e eu adoro fazer parte desse grupo. O que eu não gosto é de perceber que nossas boas qualidades tem ficado cada vez mais guardadinhas num cantinho bem secreto e nosso lado sombra anda a solta pela cidade.

Tenho ficado chocada com as cenas de mais pura rudeza com as quais tenho me deparado por Salvador. Outro dia fui ao banco com minha mãe, que tem necessidades especiais. A fila preferencial estava longa, mas tinha cadeiras suficientes para todos. Quer dizer, teria se uma senhora não estivesse sentada em duas cadeiras. Infelizmente idade avançada não isenta a pessoa da falta de educação e a tal senhora não só se recusou a se sentar em uma cadeira apenas, como começou uma briga com quem questionou sua atitude.

Tinha ido em uma loja que ficava em uma rua sem saída. Quem estaciona na frente dessa loja tem de sair de ré, porque a rua é apertada e não há espaço suficiente para fazer manobras. Até aí tudo bem, nessa rua só tem essa loja mesmo e quem vai lá sabe disso. O único problema é quando o cara do carro da frente se recusa a entender que para ele sair mais rápido, o mais lógico é esperar que o carro que está atrás dele saia primeiro. Estavamos todos lá, uma fila de carros, tentando sair ordeiramente, respeitando o princípio primeiro o que está mais próximo da saída e assim sucessivamente, quando o apressadinho da minha frente, decide que a necessidade dele de sair daquele lugar é maior do que a todas as outras pessoas e vai saindo simultaneamente, criando assim uma fila dupla apertadíssima e inúmeras situações de susto, raiva e aperto pros outros motoristas. Fiquei sem palavras, ao que minha mãe me relembra, "Melhor ficar sem palavras mesmo. Hoje em dia as pessoas sacam armas e atiram nas outras por qualquer desentendimentozinho no trânsito". Lamentável, mas verdade.

Faz três semanas que eu estou de volta e nesse pouquíssimo tempo já presenciei dezenas de situações de indelicadeza que fizeram meus cabelos arrepiarem. É um festival de pessoas jogando latinha de cerveja pela janela do carro em movimento, correndo com o carrinho de supermercado cortando pessoas e atropelando quem vem pela frente pra chegar antes na fila, se aproveitando que alguém está segurando a porta da loja aberta e entrando rapidinho sem nem olhar pra cara da pessoa que segurou a porta ou dizer um obrigado. A lista da falta de consideração com o próximo é imensa e me enche de tristeza e vergonha alheia. Aliás, nem sei se posso chamar de vergonha alheia, já que eu faço parte desta cidade.

Resolvi me tornar uma pessoa extremamente atenta. Estou fazendo questão de ser ainda mais cordial, paciente e sensível no meu trato com as pessoas que encontro por aí, na esperança de que minha atitude crie uma espécie de efeito dominó e talvéz quem sabe um dia, uma mudança de atitude nessa cidade.

Mas aí deve ter gente que vai pensar "Quem ela pensa que é pra achar que vai mudar uma cidade?" Né bem por aí, não viu galera. Eu sei que eu sou apenas uma pessoa bem normal. Mas é que eu acredito que todas nós pessoas normais temos o poder de mudar o mundo de pouquinho em pouquinho em pequenos gestos nada fora do comum. O que eu vou dizer agora é bem cliché, mas como a gente tende a esquecer não custa nada repetir. Se eu conseguir ser gentil com uma pessoa que eu encontrar no meu dia, pode ser que essa pessoa trate o próximo que encontrar da mesma forma, afinal gentileza é bom e todo mundo gosta não é mesmo? Imagine aí: eu sou gentil com você, que é gentil com seu vizinho, que é gentil com a vendedora da loja e assim por diante até que essa onda de gentileza se espalhe pela cidade inteira. Impossível? Né nada! eu começo daqui, você começa daí e a gente vê.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Pra quem ama Salvador

Quem me conhece sabe que eu amo minha Salvador, minha cidade. Não é amor cego. É amor consciente mesmo. Eu a conheço bem e sei de suas qualidades e seus defeitos. Sou apaixonada por minha cidade e ainda consigo me emocionar quando retorno à meus lugares favoritos. A descida da Contorno e o Solar do Unhão são dois entre tantos. Não canso de dizer: Salvador é linda e emocionante.

Mas nem sempre as emoções que minha cidade do coração me proporcionam são do bem. Infelizmente muitas vezes ao chegar à Salvador, ao invés de ser lembrada das inúmeras histórias que me fazem rir e sorrir neste lugar, o que eu vejo são cenas tristes que deixam claro o quanto esta cidade está abandonada, entregue à própria sorte e porque não dizer, mal amada mesmo.

Ao andar pela cidade, somente uma palavra me vem à mente: abandono. Salvador está abandonada, mal cuidada, esquecida. São inúmeras praças que ninguém frequenta, parques dominados por assaltantes e usuários de crack. Tem muitas ruas desertas, sem iluminação. Muitas calçadas quebradas e pistas esburacadas. A cidade é cheia de beleza mal aproveitada, desperdiçada. A orla é um bom exemplo disso. Nunca vi tanto potencial tão mal aproveitado. A orla dos meus sonhos teria boa iluminação e por isso seria bem movimentada de dia e de noite. Teria a melhor cena noturna de Salvador, com barzinhos e boates para todos os gostos. Teria um calçadão amplo e bem cuidado. Teria policiamento, salva-vidas e sinalização em toda sua extensão.

Essa seria a orla de meus sonhos. Mas infelizmente a realidade está bem distante disso. Hoje pela manhã fui fazer uma caminhada por lá e fiquei triste ao ver a areia da praia cheia de lixo, os urubus fazendo a festa. À noite nem sei, porque já que tenho muito o que perder, não ando dando bobeira por lá. As imagens que vejo na cidade, não só na orla, me enchem de vergonha, às vezes me dão até vontade de chorar, não só de tristeza, de frustração também.

Entra prefeito e sai prefeito e a cidade fica cada vez mais triste. Mas eu sei que o problema da falta de cuidado e abandono de Salvador não é só dos prefeitos. É nosso também. E os soteropolitanos, na minha opinião tem se mostrado péssimos cidadãos. A praia que eu vi cheia de lixo estava assim não só por falta de coleta adequada, como também porque alguém jogou aquele lixo em algum lugar que não devia. A falta de amor dos soteropolitanos com Salvador não para por aí. Além de emporcalhar a cidade, a pessoas picham os monumentos, roubam as estátuas e as lâmpadas dos locais públicos, andam com seus cachorros nas praças e não recolhem as fezes dos bichos e por aí vai.

A conservação dos espaços públicos segue uma lógica interessante. Quanto menos conservado um local for, menos comprometidas as pessoas se sentem com ele. E quanto menor o compromentimento das pessoas com um lugar, maior a predisposição delas para quebrar, destruir e nem se importarem se outra pessoa fizer o mesmo. É um ciclo horroso que foi inclusive testado e comprovado por diversos cientistas. (Zimbardo 1969 e Wilson e Kelling, 1982)

Ciclos como esses, no entanto, podem e devem ser quebrados ou melhor ainda, substituídos por outros mais positivos. Pode-se começar pequeno, devagarzinho, simplesmente não jogando lixo por aí. Quer jogar alguma coisa fora? Procure uma lixeira, ou guarde o papel na bolsa até achar uma. Eu por exemplo ando com um saquinho na bolsa. Cansou de carregar lixo consigo? Vamos exigir da prefeitura mais lixeiras pelas cidade, coletas mais eficientes, explicações sobre como estão investindo o dinheiro de nossos impostos. Mas só dá pra fazer isso se a gente fizer nossa parte, né? Isso é cuidar da nossa casa, de nossa cidade. Você gosta de Salvador? Então demonstre.

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P.S. Em 1969 o time de pesquisa do professor Phillip G. Zimbardo da universidade de Standford nos Estados Unidos, abandonou dois automóveis idênticos e em bom estado em duas cidades com populações bem diferentes. Um foi largado no Bronx em Nova Iorque e o outro em Palo Alto na California. Em questão de horas depois de ser abandonado, o carro do Bronx ja começou a ser saqueado. Durante semanas o carro de Palo Alto permaneceu intacto. 

Teóricos conservadores se deleitaram porque puderam dizer com base científica que quanto mais pobre a região, maior a predisposição ao vandalismo. Só que aí professor Zimbardo foi lá e deu umas marretadas no carro de Palo Alto. O resultado foi que no mesmo dia pessoas (brancas de classe média, diga-se de passagem) começaram a fazer o mesmo que o pessoal do Bronx. Este experimento foi repetido por outros psicólogos, sociólogos e criminalistas, todos mostrando resultados semelhantes. Até que os sociólogos James Q. Wilson e e George L. Kelling lançaram a Teoria das Janelas Quebradas em 1982 que resumidamente diz que quanto mais descuidado um local for, maior a probabilidade da ação de vândalos. Quando o descuido de uma região acaba "expulsando" o cidadão comum, com o tempo ele passa a ser ocupado por desordeiros. Muito interessante, vale à pena ler.:

KELLING, George; COLES, Catherine M. Fixing Broken Windows: Restoring Order and Reducing Crime in Our Communities. New York: Free Press, 2003.

Zimbardo, P. G., (1969). The human choice: Individuation, reason, and order versus deindividuation, impulse, and chaos. Nebraska Symposium on Motivation, 17, 237-307.