domingo, 27 de novembro de 2011

Só os alemães são felizes


Vocês não vão acreditar no que me aconteceu na última vez que eu fui ao Departamento de Imigração daqui.  Tá com tempo? Deixa eu contar, então. Depois de receber um visto permanente aqui na Alemanha, você ganha um adesivo em uma das páginas de seu passaporte. À partir de 01 de setembro desde ano, o departamento de imigração passou a adotar um outro formato pra isso. Ao invés do adesivo, a gente recebe um negócio do tamanho de um cartão de crédito, parecidíssimo com a carteira de identidade alemã.

Mas cedo ou mais tarde, todo mundo vai ter de ter essa coisa, por isso resolvi adiantar logo meu lado e fazer esse cartão. Pra isso tive de ir à ante-sala do inferno. Quer dizer, ao Ausländeramt (Departamento de Imigração). Me espantei quando cheguei lá, recebi uma senha e dei entrada na minha nova identidade sem ter que esperar uma manhã inteira e sem ter sido tratada como marginal. Agradeci ao universo, elogiei a funcionária numa tentativa de oferecer reforço positivo para esse novo tipo de comportamento e encorajar o bom atendimento. Mal sabia eu que estava me precipitando em ser tão generosa em meus elogios. 

Duas semanas depois, recebo uma carta deles me informando que a identidade estava pronta e que eu deveria ligar, marcando um horário pra retirá-la. Fantástico! Comecei a achar que realmente a política de Bremen estava começando a perceber o quanto era importante investir no bem estar de seus cidadãos independentemente de suas origens, afinal de contas a cor dos olhos e das peles podem até variar, mas as cores das notas dos euros pagos em impostos dos alemães e dos estrangeiros são iguais. Durante dois dias seguidos tento entrar em contato com eles pra marcar um dia pra pegar o documento. Dois dias de ligações constantes e obstinadas em horários diferentes do dia e nada. Ninguém nem se dava ao trabalho de atender o telefone. Nem uma gravação mandando aguardar, nem uma caixa postal na qual eu pudesse deixar um recado. Resolvi acordar cedinho no dia seguinte e ir lá. Esse departamento abre as 8:00 da manhã, meia hora depois estava lá. Poucas pessoas na sala de espera, “cheguei em boa hora”, pensei animadinha. Minha animação foi logo, logo substituida por horror, quando o funcionário que entrega as senhas de atendimento me informou que as senhas pra aquele dia tinham acabado e que eu deveria voltar no dia seguinte às 6:30 da manhã. 

“É o que? Pirou o cabeção, foi?” foi o que pensei. Se vocês sabem com as coisas funcionam aqui na Alemanha, vão entender o porquê de minha reação. Os alemães são conhecidos na Europa inteira por serem eficientes, confiáveis, trabalhadores sem serem obsessivos, mas cumpridores  de suas obrigações e implacáveis seguidores da ordem. Essa coisa de ir pra fila de madrugada, acampar na frente do prédio pra pegar ficha é coisa impensável por aqui. Afinal de contas se existe uma forma eficiente de se resolver um problema, os alemães com certeza já a estão usando, acreditem. E resolver o problema de muita gente querendo ser atendida é muito fácil. Tudo quanto é de serviço que você precise, toda informação que você desejar obter, qualquer problema que você possa imaginar, pode ser solucionado aqui por telefone, por e mail ou marcando um horário. Você chega na sua hora, é super bem atendido e nem fica estressado nem estressa ninguém.

É, mas isso não se aplica ao Ausländeramt. Lá o que se observa é que não há uma preocupação tão grande em se oferecer serviços de qualidade, como se os usuários desses serviços não compensassem o trabalho e verba que eles teriam de investir para otimizar o atendimento. O departamento de imigração aqui tem poucos funcionários, a maioria mal humorada e completamente despreparada pra lidar com pessoas diferentes deles. Quase ninguém fala inglês e se fala, finge que não fala. Por isso o que se observa lá é de arrepiar os cabelos. E não deu outra. Tive de engolir esse sapo e voltar no dia seguinte às 6:30 só pra ser informada que, outra vez, eles não tinham mais senha. Como geralmente aqui na Alemanha reclamações são levadas à sério e normalmente todo aquele que oferece alguma espécie de serviço se preocupa com o que a opinião pública pensa sobre eles, resolvi manter a calma e dizer “Ok, eu quero então registar uma reclamação formal.”

Só que eu mais uma vez eu tinha me esquecido que eu estava no Ausländeramt, onde as regras de respeito com o cidadão e preocupação com qualidade de atendimento não se aplicam. Aparentemente eles não estão nem aí pro que o público possa pensar deles. Esse descaso é generalizado e vai desde a mulher da portaria, que bloqueiou meu acesso à sala de espera e disse que se eu quisesse reclamar ia ter de esperar até às 8 horas, quando os funcionários chegassem, que não sabia se eu iria ser chamada pra colocar minha reclamação e que se eu quisesse esperar, ela pouco se importaria se eu esperasse sentada ali (e apontou pro chão em frente a sala de espera), até à supervisora do departamento, que me deixou esperando até 11 horas da manhã pra ouvir minha reclamação e não a ouviu. No final das contas, quando ela estaria pronta pra me receber, ouvi o rapaz da portaria fazendo uma ligação pra alguém, no qual ele dizia que eu ainda estava ali e finalmente, quando fui chamada achando que ia poder falar com ela, fui encaminhada a uma sala na qual minha carteirinha me foi entregue e depois o funcionário da portaria me sugeriu que já que eu tinha pego meu documento, deveria deixar a reclamação pra lá.

Quer dizer, como estrangeira, eu não tenho direito de reclamar se um serviço não me agrada, é isso? Devo me dar por satisfeita de ser tratada como persona non grata e ser dispensada como uma criança impertinente para a qual se dá um doce pra ela parar de chorar e não encher a paciência? É assim? Ahhhh, isso é que vamos ver! Eles mexeram com a estrangeira errada! Sorri - incrivelmente ainda consegui fazer isso apesar da raiva, da fome e da sede- e saí dali elaborando meu plano de ação.

Cheguei em casa e contei a situação a meu marido, que ligou pra central geral de atendimento dessa instituição (que é como uma central de atendimento ao cidadão com vários departamentos do governo como Detran, secretaria de segurança pública etc, tipo o SAC em Salvador) e perguntou como ele poderia fazer uma reclamação formal contra o departamento de imigração. Me chame de paranóica quem quiser, mas o som de uma voz falando alemão sem sotaque estrangeiro, deu acesso a uma informação, que eu não pude ter pela manhã: a reclamação poderia ser feita por email diretamente à supervisora. Conseguimos nome, email e até o telefone da criatura sem maiores problemas. Meu marido escreveu uma carta e eu escrevi outra. Nenhuma resposta depois de semanas. Conversei com o repórter de um jornal de grande circulação aqui e um artigo foi publicado sobre isso. Ele descobriu que a supervisora desse departamento pediu demissão, porque estava tendo brigas constantes com o estado por causa da questão de falta de pessoal. O porta voz deles explicou que eles estão em fase de mudança de sistema e estão tentando solucionar o problema do número insuficiente de funcionários. Eu consigo traduzir isso de duas formas diferentes em bom português: “lenga, lenga, lenga, lenga” e  “Tô nem aí, tô nem aí...” Quer saber de uma? O melhor que eu tenho a fazer é virar alemã.

Ass. Christianne Heiligen

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Teste de otimismo

Quando vim pra Alemanha pela primeira vez, não tinha grandes expectativas nem pra mais nem pra menos. Conhecia os fatos históricos e geográficos que todo mundo conhece e era só isso mesmo. Depois de meu primeiro ano vivendo aqui, voltei ao Brasil pra visitar minha família e a pergunta que mais tive de responder foi “Cris, como é essa coisa do racismo por lá?” Essa pergunta dá pano pra manga, viu…

Primeiro porque com ela fica logo muito claro que os alemães se enganam completamente quando acham que sabem o que o mundo pensa deles. Meus amigos alemães se chateiam porque acham que a primeira imagem que o mundo associa à Alemanha, é sempre a da Oktoberfest na Bavária, quando na verdade, pelo menos no Brasil a primeira coisa que vem à cabeça é mesmo Hitler e o massacre aos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Acho uma pena isso de verdade. Os alemães que vivem aqui hoje não foram responsáveis pelos erros do passado, que aconteceram aqui nesse território. O que aconteceu aqui poderia ter acontecido em qualquer lugar do mundo, mas os pobres coitados tem de viver com isso até hoje. É pesado. E de forma injusta, porque pra falar bem a verdade, e aproveitando pra mais uma vez responder à pergunta que me foi feita inúmeras vezes, eu tenho mais episódios de racismo e descriminação pra contar de Salvador do que daqui. Sinceramente, a maioria dos alemães nascidos aqui ou não (1), que eu conheci até então foram sempre pessoas muito agradáveis que se não podiam ajudar, também não atrapalhavam ou que realmente fizeram questão de me fazer sentir em casa na terra deles. Infelizmente muitos deles não vão poder ler esse post, mas a todas essas pessoas que cruzaram meu caminho por aqui, tendo elas virado minhas amigas ou não, vielen herlichen Dank(2) por terem me acolhido tão bem. 

Claro que aqui tem racismo e preconceito de todos os tipos também. Ultimamente a mídia aqui não para de divulgar casos de grupos nacional-extremistas, ativos em todo o país, atacando estrangeiros e seguidores do islamismo. Não descarto a possibilidade de escrever um post sobre isso no futuro, mas sinceramente: grupos de malucos terroristas com ideologia estranha que resolvem usar de violência contra os outros não é exclusividade daqui. Não acho que seja um problema cultural e sim um problema psiquiátrico e educacional que algumas pessoas tem. Ou seja, os alemães que uma pessoa normalmente encontra ao vir pra cá no dia a dia, são pessoas comuns que podem sem chatas ou divertidas, sinceras ou falsas, inteligentes ou limitadinhas,  super internacionais ou que vivem agarradas à suas origens, ou seja, pessoas especiais em alguns aspectos e normalíssimas em outros iguaizinhas a mim ou a você. Os alemães que eu encontro por aqui diariamente sorriem para mim quando nossos olhares se cruzam, me cumprimentam com educação e nunca me fazem duvidar que Bremen é minha casa.

Mas quero deixar bem claro que quando falo dessas pessoas, não me refiro de maneira alguma nem ao governo alemão, nem aos seus burocratas e suas repartições públicas. O departamento responsável pelos estrangeiros aqui em Bremen, sempre fez um excelente trabalho em me fazer sentir indesejada, diferente, estranha e estrangeira, como um ser inferior em uma das maiores potências mundiais. Triste, mas é verdade. Amo Bremen, minha vida aqui, meus amigos aqui, os alunos e colegas da escola onde trabalho. Mas toda vez que vou ao famigerado Ausländeramt (3), fico com vontade de ir correndo pra o aeroporto e voltar imediatamente pro Brasil, chorando pro colo de meus pais. Essas idas à essa repartição são tão desgastantes e humilhantes que são capazes de fazer explodir qualquer bolha de otimismo e de forçar qualquer um não só a tirar como também pisar e esmagar seus óculos rosinha e vermelhos (4). Felizmente as visitas a essa filial do inferno não precisam ser longas nem frequentes, mas são suficientes para destruir o bom humor de qualquer um e pra fazer qualquer pessoa duvidar que a humanidade é capaz de fazer o bem. E esse sentimento pode durar semanas. Queria ver se Pollyanna seria a mesma depois de passar por eles. Duvido.
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(1) Tem muita gente que nasceu aqui, mas que não se considera alemão de jeito nenhum. 

(2) Muito obrigada do fundo do coração.

(3)Departamento do imigração.

(4) Fiz uma brincadeira com a expressão idiomática da língua alemã "rosarote Brille tragen". Usar óculos rosa-vermelho é a tradução literal e bizonha. Essa expressão significa que a pessoa não vê a realidade como ela de fato é, e sim como se tudo fosse muito melhor e positivo. Enfim, tudo rosinha ou vermelhinho como nos óculos.