quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Interrompendo a biografia

Quando a gente pensa em mudar pra outro país, no geral não faz idéia da caixinha de surpresas que está por abrir. Tem um monte de questões complicadas de lidar, tipo a ansiedade da preparação pra nova vida, o processo de adaptação à nova cultura e sociedade e a dor de ter de deixar muita coisa pra trás. Há mais ou menos um ano eu estava lidando com minhas próprias neuras relacionadas ao meu próprio processo de imigração pra Alemanha, quando minha amiga Flora me sugeriu fazer um curso que ela mesma estava fazendo e achando muito interessante. Tratava-se de um curso que tinha como objetivo (trans)formar profissionais com alguma formação na área de humanas (professores, psicólogos, assistentes sociais e por aí vai) em palestrantes e facilitadores aptos à oferecer cursos tanto para imigrantes, (para que eles passassem a entender e melhor lidar com seus processos de imigração e através disso poderem se adaptar melhor à nova cultura) como também para diversas instituições que lidam com imigrantes, como escolas, polícia, empresas e assim por diante.

Esse curso abriu meu olhos pra coisas maravilhosas, interessantíssimas e extremamente importantes tanto para minha formação como profissional quanto para meu ser humano. Como tantas coisas na área das ciências humanas, tive o prazer de abrir portas para conhecimentos de grande magnitude que agora são impossíveis de ignorar. Uma dessas descobertas foi a de um conceito interessante que eu vou aqui traduzir toscamente como "corte biográfico". Deixa eu  tentar explicar bem rapidinho como é isso:

Para isso vou apresentar vocês a uma mulher chamada Tatiana. Tati quando criança morou no Cabula, ali um pouco antes da Uneb. Depois ela e sua família se mudaram para a Pituba, pra uma rua que fazia esquina com a Manoel Dias. Na quarta série ela foi estudar no Teresa e muitas vezes ia andando de lá até o Iguatemi pra filar aula com suas amigas. Uma vez, sua mãe encontrou com ela filando aula no shopping e como castigo ela não pode ir a uma festa de 15 anos que ia ter no prédio dela naquela semana. Mas Tatiana no geral era uma adolescente tranquila. Acabou fazendo vestibular pra Letras, primeiro na Católica, mas se desgostou de lá e depois de três semestres foi pra Ufba onde apesar de muitas greves se formou.

Quem for de Salvador, não só vai entender a estória de Tati, como também vai ser capaz de chegar a certas conclusões sobre ela, apesar de nunca tê-la conhecido. Por exemplo, quem é de Salvador sabe que o Teresa era uma escola bem conceituada nesta cidade, que depois décadas de funcionamento fechou as portas. Só de ouvir essa estória também dá pra ter uma idéia da classe social na qual Tatiana cresceu, só em saber em que bairros ela morrou. Até quem não é de Salvador, mas que é brasileiro, sabe que Iguatemi é um shopping center e o que uma festinha de 15 anos significa pra uma adolescente.

Agora imagine essa mesma Tati contando coisas de sua infância e adolescência para um amigo alemão. Se ela quiser realmente ser entendida, vai ter de dar inúmeras explicações paralelas à estória que só quem já passou por isso pra saber como é desestimulante. E inútil também, porque assim como piada explicada perde a graça, estórias cheias de parêntesis perdem o sentido. Esse é o tal do corte biográfico. Essa quebra da biografia de uma pessoa que a obriga a estar sempre se explicando. Fica complicado falar de seu prédio, sua rua, sua escola, os programas de TV que você assistia, suas experiências enfim,  porque muitas vezes vai ser difícil encontar alguém que possa dizer sendo bem sincero mesmo "eu sei exatamente o que é isso". Nenhuma estória pode ser simples, tudo tem de ser cheio de pausas explicativas e isso cansa. E quem sai de sua terra, mesmo que seja somente pra uma outra cidade já passa por isso. Por esse mesmo motivo também é que a cidade natal no geral tem um lugar especial nas recordações dos imigrantes. E claro, quanto mais você imigra, mais cortes como esse você vive. Não quero dizer que isso seja ruim. É só muito compexo e pode ser cansativo.

Eu me acostumei com a sensação de ter perdido parte de minha estória. No iniciozinho ainda caía nessa de explicar mil coisas pra fazer uma coisinha ser de fato compreendida. Depois aprendi que valia mais à pena me calar, ouvir mais, aprender mais. Foi dífícil, mas hoje em dia é tranquilo. O único problema é que o hábito de me explicar demais persistiu. Por exemplo, agora eu precisei falar tudo isso aí só pra dizer o quanto eu estou feliz de estar de volta a um lugar no qual minhas palavras não precisam de parêntesis nem notas de rodapé.

4 comentários:

  1. amiga, adorei o conceito que você apresentou e "entendo exatamente o que é isso"! rsrsrs muita saudade de você.

    ResponderExcluir
  2. Cris, primeiro, seja bem vinda :) SEgundo, o novo é assim mesmo, exige cortes, às vezes biográficos, às vezes na alma.... bjs dramáticos rs

    ResponderExcluir
  3. Pois é, amiga! Tb sei exatamente o q é isso! Muitíssimo bem "ausgedruckt"! Me liguei no seu texto e nesse curso tb. Depois vou querer saber mais. Bjs.

    ResponderExcluir
  4. Oi Shi,
    depois te conto detalhes desse curso. É fantástico e abre os olhos de forma espetacular. Beijocas

    ResponderExcluir